Algumas daquelas lembranças me fazem chorar. Preciso tomar um café.
Qual a lógica de se entristecer com coisas que há tempos deixaram de ser material e se tornaram um emaranhado de sensações surreais sem o menor sentido?
Por que o passado machuca tanto? Talvez seja porque o passado é a única coisa que o ser humano tem de verdade. Só o passado e a morte existem. São as únicas coisas que todo ser humano terá de enfrentar. Tudo é passageiro, exceto o passado. Até a morte é passageira, ela passa e te leva para o nada, ou para o tudo, nunca saberemos.
Aquela tensão frequente, o sentimento de ansiedade sem nexo ou o colapso nervoso.
A menina que vendia caneta no cruzamento do Largo quando a madrugada já vinha por adentrar engolindo o resto de vida noturna que restara naquele dia quinze.
O velho atleta que abandonara novamente o holofote, ou o pai que passara dos limites com a filha.
A estrela mais brilhante que como um guarda imóvel protege a velha antena. O homossexual do outro lado da rua e a tenebrosa imagem do velho Jack caminhando de cueca pelos corredores escuros.
A garrafa azul do último dia, o amigo nipônico inesperado e inesquecível, a despedida sofrida na chuva, as lagrimas pelos fios do telefone e a ruiva que despertara um sentimento. O que provocavam aqueles cabelos cor de sangue só Deus pode perdoar.
Algumas daquelas lembranças me fazem chorar. Por favor, mais café.
A dor da saudade é frequente na raça humana, a saudade é o sentimento que anda de mãos dadas com o arrependimento. De tudo me arrependo. Do que fiz, do que não fiz, do que ainda há de vir já me arrependo. Quando se está sozinho em meio a lembranças que se percebe o quanto já vivera, o quanto já sofrera, o quanto já perdera, e o pouco que conquistou. E se arrepende.
O amor eterno que se acabou e deixou um vazio imenso. A solidão imensa que não se acaba e deixa um vazio eterno.
O velho poeta paulistano que lhe contara sobre a práxis poética na Zona Sul, o velho poeta cearense desaparecido que dera sentido a seus pensamentos por hora deprimentes e pessimistas, o velho poeta do botequim da Domingos que mal sabia escrever o nome, mas se descrevia como poucos.
A cara no vaso da lanchonete, a escuridão total. O rock da Zona Leste e o funk na quadra da escola. A ressurreição da bondade humana no semáforo, um sinal pichado de amor no terraço do prédio.
A prostituta grávida, o sequestro da lotação, o metrô, o ônibus, a vitamina e os sonhos jogados no lixo. O homossexual do outro lado do banco, a sensação de terror e exaustão. As cheias e o vazio. O céu cinza e o coração alvinegro. A colega loira que despertara um sentimento. O que provocavam aqueles cabelos cor de ouro só Deus pode perdoar.
Algumas daquelas lembranças me fazem chorar. Um pouco mais amargo se possível.
A solidão é um prazer que o ser humano ainda não aprendeu a apreciar. A maldade é inerente a pessoa, e todos os laços são frágeis à maldade humana. Somos maldosos e malvados. Mau e mal. Aprecio a solidão, mas admiro quem sabe se relacionar. Sou alguém e não sei quem sou. Sou pra você o que não sou pra ele, pra mim não sou nada, sou um mistério, sou aquele que não vai dormir essa noite pensando em você, independente de quem você seja.
O retorno. Os retornos. Os textos jogados fora e as ideias perdidas na memória prejudicada. O fundo do poço, a sensação de beco sem saída. Você é um perdedor, fadado ao insucesso. O pai que passou dos limites com o filho. O mais novo grande amigo, aquele que sabe mais de você que você mesmo. Aquele que pensa como você, mas sente diferente. A turma indissolúvel que se dissolveu. A tristeza inicial. A decepção. A jurisprudência, a hermenêutica e a justiça positivista. As reflexões sobre Deus, as aulas bíblicas e as aulas mundanas. A dor das despedidas, e as mulheres de cada dia. A estrela cadente que caiu sobre os corpos nus esparramados no gramado público.
A insônia que aumenta sua noite e diminui seu dia. Gostaria de dormir mais e pensar menos. Quem pensa muito na vida, morre cedo amor. A luz no fim do túnel, o adultério e o novo sentido da vida. A chuva que lava a alma, a lama que suja os corações. Ela se foi. O desespero. A morena que despertara um sentimento. O que provocam aqueles cabelos cor da noite só Deus pode perdoar.
Sangue, ouro, noite. É tudo que se precisa pra ser feliz.
Algumas dessas lembranças sempre me farão chorar.
Cancela o café e me traga um comprimido. Apaguem as luzes de seus quartos, essa noite pretendo dormir.