segunda-feira, 16 de abril de 2012

"Nasci para satisfazer a grande necessidade que eu tinha de mim mesmo."

Foi necessário.

Foi necessário sentir novamente aquela brisa que embriagava. Hoje, meus cabelos são escassos e é o absinto que me embebeda. Estive perdido no fundo de um vale sombrio, onde descobri que é no íntimo da escuridão que se valoriza a luz. Hoje, finalmente tenho forças pra te contar onde fui. Saiba que não tenho orgulho. Mas também não tenho vergonha, nem me arrependo. Foi necessário.

Foi necessário o sino badalar doze vezes pra eu perceber que dormia no banco da igreja. Minha memória não tem funcionado como antes. Freud chamou de mecanismo de defesa, eu chamo de contra-ataque. Notícias corriam pelos correios populares, enquanto redigia meu diário aberto. O tempo passava. O mundo passava. Passeava. Passivo. Paciente. Perverso. Pulou por cima de mim. Cai e ouvi a voz me chamando por três vezes. Atropelado pelo destino, socorrido pelos deuses da noite. Pelas palavras bem traçadas. E por novos lençóis que me abriram as pernas. Pequei mais que orei. Foi necessário.


Foi necessário.

Foi necessária e homérica a derrubada das máscaras. Desci o morro chorando por fora e gritando por dentro como um guerreiro espartano. Era a guerra sendo ganha da forma mais bizarra e chocante. Tanto faz. Guerra é guerra. E ao contrário do que dizem, todos saem vitoriosos. Pelo fato de saírem. Apanhei mais que bati. Morri mais que matei. Venci na sutileza. Na gentileza e na destreza. Comemorei minha vitória nos braços da puta mais exuberante do cabaré. E ela sussurrou em meu ouvido algo que jamais me esqueci, mas isso eu conto mais adiante.

Foi necessário contar algumas mentiras. Não é fácil viver de par em par. O homem nega mas sabe que toda angústia é um sinal futuro. E aquela semana reservava uma tensa e inesperada situação. Mas outras aventuras mudaram o trajeto. E como toda e qualquer atitude, mudaram também a vida pra sempre. Senti saudade de escrever e descrever. De discutir e debater. De te emocionar. Não voltei antes porque sempre soube onde te encontrar e isso é chato. A dificuldade é interessante. O mistério excita. Odeio pessoas imprevisíveis. Odeio ainda mais as previsíveis. Um viva ao meio termo.


Foi necessário.

Foi necessário rever algumas prioridades. Malhar alguns Judas. Guilhotinar alguns pescoços reais. Apedrejar algumas Madalenas falsamente arrependidas. Foi necessário ler algumas tragédias “rodriguianas”. Dramas de Shakespeare. Filosofias e teorias de Nietzsche. Poesias de Pessoa. Foi necessário assistir Allen. Chocar com von Trier. Chorar com Tornatore. Gritar com Tarantino. Me emocionar com Clint e apreciar Aronofisky. Foi necessário estudar Processo Civil e ouvir Belchior. Foi necessário ler a bíblia.

Foi necessário decidir entre elas e assim me perdi. Gosto de testar, gosto de tentar, de me aventurar e experimentar. Gosto de novidade, de liberdade, de jogo de sedução e conquista. Odeio a rotina e vivo cercado por ela como anéis em Saturno. Além de meu cabelo e minha memória, meu raciocínio também não é o mesmo. Este texto, por exemplo, todo fora de ordem, fora de nexo, fora de sentido. Falando de coisas que não são nada, que são tudo e coisas que nem sei o que são ou o que querem ser. Essa é a maior prova de que voltei. Com estilo e sem motivo. Na noite em que venci a última batalha, a meretriz me disse com o rubro pintado a boca: Não existe caminho certo ou errado pra quem tem coragem de voltar.


E dessa vez foi necessário.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

"Podemos facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro; a real tragédia da vida é quando os homens têm medo da luz."

A vida é um jogo de azar onde todos perdem. Os sonhos são combustíveis ilusórios que criam as regras e te fazem apostar aquilo que não tem. Não temos nada. Não somos nada. Simplesmente reflexos de experiências e sensações. Vivemos o jogo da morte. Brincamos com sangue e fugimos da insanidade, sem saber que ela é a suprema felicidade. Bendito seja o fruto da loucura e o curandeiro que o propagou. A terapia acabou, o espetáculo começou, chegou a hora de vencer a vida. Viver a morte e vender a alma.

Os lírios se despedaçaram, as pedras rolaram sobre Sísifo e destruíram o vilarejo. O velho casebre abandonado ainda guarda os segredos do milagre. O amor se foi nas águas ácidas do ribeirão. É preciso aceitar, o desejo do mundo é o inferno dos outros. Era noite quando colocaram a coroa de espinhos na cabeça do rei de copas. Era dia quando o cavaleiro da esperança se entregou ao desespero. Era domingo quando o filho da luz voltou pra escuridão. Era longe, e mesmo assim valia à pena.

O fogo queimou as crianças e elevou as almas. A beleza da tristeza sobrepôs à aflição da tragédia. Foi quente. Doloroso. Asfixiante. Aquela força sufocante encheu o pulmão, parou a respiração, aliviou a tensão dos músculos e se apagou. A injustiça dilacerou os corações inocentes e concedeu a redenção aos pecadores. O pecado é o renascimento da vida verdadeira, fértil e plenamente deliciosa. A força dos ventos traz a mudança, traz a dor e leva a esperança profana para o mais distante labirinto divino. Onde viver compensa. Onde não existe vida.

A vida é um acaso. A morte é o destino. A coincidência é o inevitável. A lógica é uma grande mentira. Os afogados voltaram com o fruto proibido e apagaram a pureza do jardim. Os lírios não existem mais. As árvores não possuem frutos. Possuem corpos, almas, espíritos, desespero, aflição e morte. A natureza da dor é a única natureza. O casebre destruído é o peito dos camponeses macabros. O segredo dos meninos é o erotismo perverso da composição humana. O aposto descreve o que todos já sabem. Joguemos com a vida e brindemos a morte.

Não sofras. A decepção só perpetua onde há esperança.

quinta-feira, 31 de março de 2011

“O suicídio é a forma mais sincera de auto-crítica.”


Sente

Sente-se

Sinta-se só

Sinta sozinha

Sinta-se na solidão

Siga-me e sofra

Sonhe sim,

Sonhe sempre

Saiba ser somente sua,

Sua

E só.


Estou sóbrio. Cada segundo em minha mente é uma eternidade. Ah! Como eu queria ser mortal. A percepção de infinito é assustadora. É uma sensação de mal sem fim. Estou perdido no paraíso com tudo aquilo que odeio. Sinto sua presença, mas não posso tocá-la. Tenho uma corda, uma navalha e um antidepressivo. Tenho pressa, tenho ânsia e um desejo incontrolável de te ter como na última noite, se rastejando sobre o meu suor. Estou aflito. Pretendo deixar um bilhete à beira da cama pra quando você acordar. Chegou a hora. Estou cercado de epiléticos, catalépticos, aidéticos, morféticos e solitários. Estou cercado de condes, nobres, putas, mentirosos e enfermeiras. Estou cercado de pessoas me olhando e chorando.

- Não chorem. A lágrima é o combustível da melancolia.


Estou consciente. Por um minuto senti saudades de mim mesmo. Pouco me lembro de você, minha memória se apaga gradualmente. A voz doce e amiga da desconhecida do prédio da frente tocara na ferida. Não se pode recomeçar. Não se pode reinventar. A morte é a mais sensata das coisas, pois ela nunca volta atrás. Queria fechar os olhos e não enxergar a escuridão total. Queria não refletir sobre a escuridão. Queria poder descansar. Mas eu posso continuar. Quero me abraçar às ninfas e me atirar no lago congelado. Quero dormir com ela na sua cama, sem medo. Sem pudor. Quero atravessar os limites do profano, do mundano e do sagrado. Eu sou o Rei. Eu sou a Lei. Eu sou o Sol. Eu sou tudo porque tudo sou eu.

- Não gritem. Seus gritos me impedem de ouvir o canto dos anjos.


Estou morto. Morto e decepcionado. A morte não é o fim. Nem o comprimido, nem os cortes, nem a forca. Nada foi suficiente pra aliviar a minha dor. Só o prazer de poder admirar seu corpo nu sobre o tapete, e sua surpresa a me ver na janela, valeu o ato. Tranquei a gaveta por dentro e engoli a chave. A última noite foi inesquecível. Pra você. Não deixei o bilhete, mas deixei uma carta dentro da oitava edição de “Zaratustra”. Quem tiver a ousadia de ler Nietzsche, irá me entender. Do contrário eu serei uma mera recordação de mistério e reprovação. Morrer dói menos que a ingratidão, a falsidade e a hipocrisia. Ainda não encontrei a paz. Ainda não encontrei com Ele. Só encontrei a menina do trem, de rosto rosado, cabelos enrolados, vestimentas clássicas e olhar ameaçador. Ela que se foi sem nunca se explicar. Disse-me que em breve saberei de tudo.

- Não me conte. O mistério é o barato da vida. E da morte.


Estou certo. Vou afogar seu filho no açude. Te perseguir no labirinto. Arrebentar a porta a machadada. Me vestir de laranja e te violentar sistematicamente. Mutilar seu orgão na cabana. Iluminar e congelar. Esse é o meu lar. Ou o nosso. Talvez um dia eu revele o conteúdo da carta, somente pra você que agora lê esse relato. Mas pra isso você precisa continuar atento a tudo que escrevo. Tudo faz sentido. Tudo é um pouco de mim. Basta me seguir. E sobreviver, é claro.

- Não tema. O medo é o escudo dos incompetentes.


Nos traga à força

Nos traga a forca

Nos traga pra dentro do mais profundo desespero.

Se todos os caminhos te levam para o norte

Não pense,

Se jogue,

Bata asas

E morra com tudo aquilo que ainda não lhe foi tirado

A sua covardia.

sábado, 26 de março de 2011

"Não amar e não odiar é a metade da sabedoria. A outra metade é nada dizer e nada acreditar."



- Sentes alguma coisa por mim?

- Sim. Mas não sei dizer o que é.

- Não há de ser nada.


Há dias venho travando um jogo de sedução com a vida e ela vem me vencendo. Venho implorando ajuda aos meus pensamentos, que se recusam a me socorrer. Meu estado febril não me quer acordado, minha consciência me impede de dormir. Posso contar-lhe o que sinto, quem sabe assim consigo exorcizar. Quem sabe assim consigo matá-la.

Eu quero atravessar o sertão carregando a cruz e o burro, eu quero enforcar o velho mineiro inconfidente, quero cortar os pulsos e deixar meu sangue escorrer no seu remorso. Eu quero fazer greve de fome, compor um blues, queimar o ditador e dançar um tango sobre suas cinzas. Posso fazer a serpente engasgar com a fruta. Quem sabe assim consigo matá-la.


- Acreditas em meus sentimentos?

- Sentimentos não são confiáveis.

- Pessoas não são confiáveis.


Há segredos onde acredita serem as águas límpidas. Há segredos nas palavras do profeta. Há verdade nas mentiras que ela insiste em propagar. Há dor no sorriso do palhaço. As agulhas são minhas redentoras, sempre me lembram que ainda estou vivo. Estou com um desejo imenso de me deitar com uma garota de programa. Ou duas. Gosto de número par. Posso injetar alegria, mas prefiro baforar a discórdia. Quem sabe assim consigo matá-la.

Eu quero ser um guardador de rebanhos, quero jogar uma mensagem no mar e receber respostas das sereias. Quero me cansar da guerra antes dela começar, quero invadir o Paraguai mesmo que sem motivo, quero invadir a morena mesmo que sem proteção. Quero tomar absinto, vodka e picolé. Quero tomar chuva. Ácido e insulina. Quero tomar juízo. Quero tomar tudo que é seu e fugir com você. Posso te esperar tricotar por mil e uma noites. Quem sabe assim consigo matá-la.


- Já me traístes?

- Claro que não.

- Por que mentes?

- Porque perguntas.


Há brilho nos olhos de quem ama. Há brilho na lâmina que corta a jugular. Há brilho nas estrelas do céu e no neon do cabaré. Há mistério em Helena, esposa de Menelau de Sparta. Há verdade na relação de Arthur e Guinevere. Há amor paterno entre Lear e suas crias. Haverá muita festa no céu por aquele que se arrependa. Abençoai os filhos pródigos. Abençoai os caminhos com volta. Posso marcar o caminho com pão, mas prefiro marcar com pedaços do seu corpo. Quem sabe assim consigo matá-la.

Eu quero descobrir a cura, carregar os pecados do mundo, sentir de perto o bater das asas do beija-flor. Eu quero ser a cura do pecado e bater asas. Quero ser confiável e desconfiado. Quero dialogar com Allen, discutir com Nietzsche, transcender com Keith e escrever as memórias do Alzheimer. Quero penetrar a tesoura nas entranhas de Dalila. Quero fazer uma sopa com as pedras do caminho. Na verdade, só queria ser menos sozinho. Posso levar os vampiros pra África ao som de “The Wall”. Quero contaminar. Quem sabe assim consigo matá-la.


- Sentes alguma coisa por mim?

- Sinto que me controlas.

- Alguém precisa controlar.

- Tudo bem, você não é de todo mal.

- Sou sim.

- Eu sei. Mas ninguém precisa saber.


Quero olhar da janela e admirar o meu rebanho de gafanhotos.

Quero olhar no espelho e não sentir vergonha. Nem azia.

É necessário ser homem. Se sentes algo por mim, preciso acabar com sua vida. Quem sabe assim consigo viver em paz.

quinta-feira, 17 de março de 2011

"Nunca foi sensata a decisão de causar desespero nos homens, pois quem não espera o bem não teme o mal."



Toda noite quando deito, ouço as vozes do silêncio a me chamar.

São frias. Frias e firmes. Frias, firmes e familiares.


Fui apunhalado pelas costas por alguém que me beijou o pescoço e desapareceu antes de perceber-te. Não se pode buscar na escuridão da memória, momentos inexistentes de nosso passado. A confiança seria um sentimento belo se esta não fosse depositada em seres humanos. Procuro me lembrar dela quando me sinto triste, aquele vestido bordô se dissolvendo em meus braços na água da chuva. Aquele segredo vital e sujo guardado no fundo da velha gaveta trancada com a chave covarde da chantagem. Sinto que posso gritar e ouvir sozinho o meu pedido de socorro. Sinto que posso chorar, e morrer engasgado com meu próprio soluço.



Toda noite quando deito, sinto os braços da aflição a me enforcar.

São duros. Duros e doídos. Duros, doídos e dramáticos.


São os meus vícios que me mantem vivo, a chuva hoje me queima a alma, dilacera meus sentimentos, e eu gosto. Gosto da loucura. Gosto do pecado. Gosto da bela morena que me abraça com a navalha e arranca sangue dos meus olhos. Sangue este, que o velho amigo do recanto se recusou a assumir que arrancara. Mais eu sei. Eu sempre sei. Eu sei de tudo. As vozes do silêncio me contam. Me contam sobre você, sobre mim, sobre ela. Não tente se esconder, se a chuva te queima, as estrelas te observam, e elas não sabem guardar segredos. Sinto que posso me atirar do pico, e nenhum anjo virá me segurar. Sinto que posso correr, e tropeçar nas próprias mentiras que me perseguem.



Toda noite quando deito, vejo as sombras do desespero a me cegar.

São tensas. Tensas e tortas. Tensas, tortas e traumáticas.


Ela sempre sonhou em construir um castelo, mas as bruxas do porão nunca permitiram. Nada incomoda mais que a felicidade alheia, ninguém gosta de sorrir por você. A menina não teve seu castelo, mas teve seu príncipe, que lhe apresentou a vida, e te presenteou com a morte, embrulhada em um belo vestido bordô. Seria a dor do amor pior que a dor da morte? Para quem fica é claro. Morrer deve ser bom, nunca ninguém reclamou. O amor é o xeque. A morte é o xeque-mate. Afinal, como dizia o velho poeta inglês, todo desejo é um desejo de morte. Sinto que posso me jogar no mar, e a correnteza se recusará a me levar. Sinto que posso escrever uma canção e canta-la no meu próprio funeral.



Toda noite quando deito, sinto os sabores amargos da solidão a me enojar.

São azedos. Azedos e aguados. Azedos, aguados e alucinógenos.


Está chegando a hora de partir, alguém está pra chegar e não quero estar aqui quando isto acontecer. Ele vem pra trazer alegria e isso me embrulha o estomago. Quero estar sozinho quando tudo acabar bem. Eu sei o que ele sente por ela, as vozes do silêncio me contaram. Mas é segredo. Acho que vou tranca-lo na velha gaveta, junto com todo sentimento de culpa e a arma do crime. A garrafa verde ainda está cheia. Posso ver o seu reflexo. Agora sei quem é você. Siga seu destino e me mande para o inferno. Prometo que assim que puder, lhe mando uma correspondência. Mande um beijo a bela morena, diga-lhe que o seu sabor ainda reside em meu íntimo. Sinto que posso fugir, mas o céu cairá sobre mim. Sinto que posso exagerar, e apagar meus sinais na overdose do seu corpo.



Toda noite quando deito, sinto o cheiro de sexo a me asfixiar.


Não me importo. Sexo é a verdade. É vida. É o único prazer que o homem tem consigo mesmo. Talvez o mundo gire em torno disso. Pouco me importo. Não me interessa salvar o mundo. Só me interessa salvar você. Eles são todos ingratos, irão me crucificar de qualquer forma. Sinto que posso morrer, e nem mesmo você sentiria minha falta. E caso ressuscitasse ao terceiro dia, ainda sim, ninguém iria crer na minha palavra.

sexta-feira, 11 de março de 2011

"Embora o espírito estremeça à lembrança e seja avesso ao pranto, começarei."


Algumas daquelas lembranças me fazem chorar. Preciso tomar um café.


Qual a lógica de se entristecer com coisas que há tempos deixaram de ser material e se tornaram um emaranhado de sensações surreais sem o menor sentido?

Por que o passado machuca tanto? Talvez seja porque o passado é a única coisa que o ser humano tem de verdade. Só o passado e a morte existem. São as únicas coisas que todo ser humano terá de enfrentar. Tudo é passageiro, exceto o passado. Até a morte é passageira, ela passa e te leva para o nada, ou para o tudo, nunca saberemos.

Aquela tensão frequente, o sentimento de ansiedade sem nexo ou o colapso nervoso.

A menina que vendia caneta no cruzamento do Largo quando a madrugada já vinha por adentrar engolindo o resto de vida noturna que restara naquele dia quinze.

O velho atleta que abandonara novamente o holofote, ou o pai que passara dos limites com a filha.

A estrela mais brilhante que como um guarda imóvel protege a velha antena. O homossexual do outro lado da rua e a tenebrosa imagem do velho Jack caminhando de cueca pelos corredores escuros.

A garrafa azul do último dia, o amigo nipônico inesperado e inesquecível, a despedida sofrida na chuva, as lagrimas pelos fios do telefone e a ruiva que despertara um sentimento. O que provocavam aqueles cabelos cor de sangue só Deus pode perdoar.


Algumas daquelas lembranças me fazem chorar. Por favor, mais café.


A dor da saudade é frequente na raça humana, a saudade é o sentimento que anda de mãos dadas com o arrependimento. De tudo me arrependo. Do que fiz, do que não fiz, do que ainda há de vir já me arrependo. Quando se está sozinho em meio a lembranças que se percebe o quanto já vivera, o quanto já sofrera, o quanto já perdera, e o pouco que conquistou. E se arrepende.

O amor eterno que se acabou e deixou um vazio imenso. A solidão imensa que não se acaba e deixa um vazio eterno.

O velho poeta paulistano que lhe contara sobre a práxis poética na Zona Sul, o velho poeta cearense desaparecido que dera sentido a seus pensamentos por hora deprimentes e pessimistas, o velho poeta do botequim da Domingos que mal sabia escrever o nome, mas se descrevia como poucos.

A cara no vaso da lanchonete, a escuridão total. O rock da Zona Leste e o funk na quadra da escola. A ressurreição da bondade humana no semáforo, um sinal pichado de amor no terraço do prédio.

A prostituta grávida, o sequestro da lotação, o metrô, o ônibus, a vitamina e os sonhos jogados no lixo. O homossexual do outro lado do banco, a sensação de terror e exaustão. As cheias e o vazio. O céu cinza e o coração alvinegro. A colega loira que despertara um sentimento. O que provocavam aqueles cabelos cor de ouro só Deus pode perdoar.


Algumas daquelas lembranças me fazem chorar. Um pouco mais amargo se possível.


A solidão é um prazer que o ser humano ainda não aprendeu a apreciar. A maldade é inerente a pessoa, e todos os laços são frágeis à maldade humana. Somos maldosos e malvados. Mau e mal. Aprecio a solidão, mas admiro quem sabe se relacionar. Sou alguém e não sei quem sou. Sou pra você o que não sou pra ele, pra mim não sou nada, sou um mistério, sou aquele que não vai dormir essa noite pensando em você, independente de quem você seja.

O retorno. Os retornos. Os textos jogados fora e as ideias perdidas na memória prejudicada. O fundo do poço, a sensação de beco sem saída. Você é um perdedor, fadado ao insucesso. O pai que passou dos limites com o filho. O mais novo grande amigo, aquele que sabe mais de você que você mesmo. Aquele que pensa como você, mas sente diferente. A turma indissolúvel que se dissolveu. A tristeza inicial. A decepção. A jurisprudência, a hermenêutica e a justiça positivista. As reflexões sobre Deus, as aulas bíblicas e as aulas mundanas. A dor das despedidas, e as mulheres de cada dia. A estrela cadente que caiu sobre os corpos nus esparramados no gramado público.

A insônia que aumenta sua noite e diminui seu dia. Gostaria de dormir mais e pensar menos. Quem pensa muito na vida, morre cedo amor. A luz no fim do túnel, o adultério e o novo sentido da vida. A chuva que lava a alma, a lama que suja os corações. Ela se foi. O desespero. A morena que despertara um sentimento. O que provocam aqueles cabelos cor da noite só Deus pode perdoar.


Sangue, ouro, noite. É tudo que se precisa pra ser feliz.


Algumas dessas lembranças sempre me farão chorar.


Cancela o café e me traga um comprimido. Apaguem as luzes de seus quartos, essa noite pretendo dormir.